A compra da vacina Covaxin, de origem indiana, foi alvo de acusações envolvendo possível existência de fraude, consubstanciada na utilização de empresa de fachada e com pagamento pretensamente superfaturado, tudo com a suposta conivência do presidente da República e do então ministro da Saúde, os quais, avisados, não teriam tomado as devidas atitudes. As acusações foram trazidas pelo deputado Federal Luis Miranda (DEM-DF) em plena CPI da Covid-19, com base em mensagens enviadas pelo seu irmão, Luis Ricardo, então servidor do Ministério da Saúde [1].
Em contra-ataque, o governo federal requereu à Controladoria-Geral da União a abertura de processo administrativo disciplinar em face de Luis Ricardo, bem como à Procuradoria-Geral da República a abertura de inquérito em face do deputado federal e de seu irmão, alegando que os documentos apresentados foram fraudados e que teria havido denunciação caluniosa, sem, no entanto, requerer a abertura de investigação para a compra da Covaxin em si, o que, segundo noticiado, foi realizado por ato de ofício do Ministério Público Federal [2].
Sem adentrar ao mérito das acusações, fato é que toda a discussão (e as tensões dela decorrentes) nada mais é do que consequência da regulamentação “à brasileira” do whistleblowing e do comum desrespeito ao “assoprar do apito”.
Tenho dito que o whistleblowing é um ato deliberado, não obrigatório, de um indivíduo civilmente capaz que não possui obrigação legal de tomar qualquer medida investigativa e/ou repressiva, de informar a quem possua essa obrigação legal acerca da prática de atos ilícitos — sejam eles de cunho criminal, administrativo e/ou cível —, perpetrados no âmbito da Administração Pública e/ou de entidades privadas, que afetem terceiros [3].
Em troca (e como possível condição para tal), aquele que traz à tona a informação deve receber garantias, que incluem proteção à vida, à integridade física, à estabilidade de emprego, acompanhamento psicológico e blindagem contra qualquer tipo de retaliação. Ainda, como prêmio por ter auxiliado na descoberta do ilícito, pode receber, inclusive, uma recompensa financeira, a ser calculada com base no que for efetivamente recuperado [4].
Utilizado em larga escala nos Estados Unidos desde sua primeira regulamentação, na versão original do False Claims Act (1863), o instituto de origem anglo-saxã é responsável por recuperar mais de 60 bilhões de dólares nos últimos 30 anos, segundo o Department of Justice [5]. Eleito uma das seis melhores práticas anticorrupção do planeta [6], o whistleblowing tem natureza de coprodução do controle público, ao utilizar o cidadão como linha de frente do combate à corrupção e é desenvolvido dentro de um contexto de accountability governamental.
(Re)desenvolvida [7] a partir da versão norte-americana, a regulamentação do whistleblowing no Brasil deu-se com a aprovação da Lei Federal 13.964/2019 (pacote “anticrime”), a qual alterou substancialmente a Lei nº 13.608/2018, a fim de possibilitar denúncias envolvendo crimes contra a Administração Pública, ilícitos administrativos e quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público, por meio de ouvidorias e corregedorias, mas com equívocos em seu conceito.
A falha legislativa consiste, especialmente, em uma construção genérica da estrutura de recebimento, tratamento e investigação dos relatos, bem como da própria política antirretaliação e até da recompensa, não se explicitando, por exemplo, os procedimentos, autoridades responsáveis pela investigação ou de como as garantias seriam aplicadas (ou por quem geridas e executadas), o que, segundo a experiência internacional dos últimos três séculos, leva a um desincentivo das denúncias e uma perseguição sistemática a reportantes.
O caminho escolhido (e anunciado) pelo governo federal não difere em nada de outras administrações estrangeiras, que é o de transformar o whistleblower em acusado e de utilizar de toda a sua estrutura contra quem reporta uma possível atividade ilícita, esquecendo-se da investigação do fato em si. E a falha legislativa brasileira só colabora com tal contexto, pois não há certeza de quem deveria ser o responsável por auxiliar o reportante contra retaliações. Modus operandi semelhante identifica-se nos EUA em relação a Edward Snowden, Chelsea Manning, entre outros. E como a Rússia e China também fazem com informantes com alguma recorrência.
A pedra angular da discussão não é a de tornar o whistleblower alguém imune à responsabilização ou de alçar o fato reportado à condição de verdade absoluta, mas, sim, de garantir ao reportante a proteção antirretaliação enquanto o fato é investigado. Caso confirmado, ainda mais proteção deve ser concedida a quem “assopra o apito” e a estrutura do Estado deve servir à responsabilização dos envolvidos. Noutro norte, identificada fraude ou ato doloso do whistleblower, aí, sim, deve sofrer as consequências do ato em toda a sua extensão.
A ideia de empoderar os cidadãos para que estes sejam agentes de mudança ou de combate à malversação de verbas públicas e às fraudes civis parece-me a forma mais eficaz de se descobrir os grandes esquemas criminosos que assolam não só o Brasil, mas o mundo como um todo e os atos ilícitos praticados pelo alto escalão de qualquer ente federativo.
Para tanto, são necessárias garantias efetivas, que de fato garantam que o whistleblower será protegido contra toda sorte de retaliações, recebendo, ao fim, uma recompensa pela sua coragem e auxílio. Ao mesmo tempo, não se podem perder de vista as garantias constitucionais daquele que é apontado como participante do ilícito, isso pois, acima de tudo isso, há a cláusula constitucional do devido processo legal e tudo o que ela traz consigo, bem como da possibilidade de responsabilização de quem imputa fato falso.
Se bem legislado e idealmente utilizado, o whistleblowing traz resultados profundos e em pouco tempo é capaz de quebrar paradigmas na sociedade, com o cidadão sendo visto como aliado no combate à corrupção, assumindo a linha de frente. Se mal legislado e utilizado, o futuro é sombrio e a participação cidadã, cada vez mais desestimulada.
A escolha do governo federal até o presente momento parece equivocada, devendo tornar prioritária a apuração do fato apontado, por meio das autoridades competentes, para depois buscar a eventual responsabilização de quem praticou algum ato ilícito, seja quem for.
[1] Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/republica/luis-miranda-quem-e-o-deputado-youtuber-que-acusa-o-governo-no-caso-da-covaxin/. Acesso em 25/6/2021 às 19h05min.
[2] Disponível em https://www.poder360.com.br/justica/mp-junto-ao-tcu-pede-investigacao-sobre-compra-da-covaxin/. Acesso em 25/6/2021 às 19h46.
[3] PRADO, Rodolfo Macedo do; BESSA NETO, Luis Irapuan; CARDOSO, Luiz Eduardo Dias. Novos instrumentos de prevenção e enfrentamento à delinquência econômica: compliance, perda alargada e whistleblowing. Florianópolis: Habitus, 2019, p. .
[4] Idem.
[5] Disponível em https://www.justice.gov/opa/press-release/file/1233201/download. Acesso em 25/06/2021 às 19h28.
[6] Compendium of good practices on anti-corruption for OGP action plans. Disponível em https://www.transparency.org/whatwedo/publication/compendium_of_good_practices_on_anti_corruption_for_ogp_action_plans. Acesso em 25/06/2021 às 19h42min.
[7] No período colonial brasileiro, havia disposição expressa do whistleblowing nas Ordenações Manuelinas (1512-1603) e Filipinas (1603-1822), que se perdeu a partir da Independência (1822).